coagulação, inflamação, proliferação, contração, remodelação

Começou tudo no sábado em que, a acabar de preparar o jantar para as visitas, cortei o anelar esquerdo ao mesmo tempo que o pão. Foi uma dor momentânea, de sangue abundante, com uma faca de pão grosseira que esfacelou mais do que golpeou. Apertei o dedo acima do coração a caminho da casa de banho, inundei-o de água e Betadine, enrolei-o em gaze estéril e fui lavar a tábua, ainda a tempo de receber as pessoas. O pão foi para o lixo. A meio do jantar tive que ir mudar a ligadura, o sangue continuava vermelho vivo, a ferida não fechava e eu não tinha suturas adesivas. Dupliquei a quantidade de gaze e de fita adesiva e aumentei a pressão.

Dois dias depois a ferida estava a cicatrizar mas não fechava e voltava a sangrar sempre que apanhava água. Acabei por ir ao posto de saúde só para descobrir que já não podia ser suturada e vir embora com novos pensos rápidos.

A dor estava sempre lá, mais ou menos presente, às vezes latejante às vezes dormente, mas constante. Acabava por me esquecer dela, normalmente até bater com o dedo em alguma tecla enquanto escrevia. Lembro-me de pensar na natureza da dor e de como estaria ou não relacionada com o tipo de faca com que me tinha cortado.

No final do dia em que fui ao posto médico decidi testar a faca de filetar. Tenho um excelente conjunto de facas, presente de um ex que ganhava a vida a cozinhar para gente com mais dinheiro que palato. A faca esguia e curvilínea do peixe sempre foi a mais afiada, a que teve o gume mais agudo. Ia usá-la noutro dedo, quando pensei que era estúpido cortar-me nas mãos. Além de me fazerem falta quase sempre, estavam muito à vista. Ponderei a parte de dentro da coxa, mas achei por alguma razão que a pele era muito fina. Decidi-me pela parte de cima, a que cobre o quadricípite; era acessível, tinha a textura certa e parecia um bom sítio. Lembro-me que por alguma razão esterilizei a faca com álcool antes de me ir sentar na cama. Tive a previdência de levar uma toalha de banho, achei que podia sangrar mais do que o previsto e não queria manchar os lençóis. Dobrei o joelho para esticar a pele e encostei a lâmina. Fui fazendo pressão à medida que a deslizava, testando a força que seria preciso fazer para abrir a pele. Foi um processo inquisitivo, como uma criança a tentar perceber como encaixar duas peças de Lego. Não foi por tentativa e erro porque não havia erro possível, terá sido mais por tentativa e sucesso. Fiz um esgar de dor quando a faca entrou na carne e instintivamente levantei a mão. Não via realmente o corte, porque o sangue nascia e deslizava em fio pela coxa, acabando por correr para a direita, em direção à anca. Mas dentro da minha cabeça deduzia um V transversal onde a abertura tinha sido feita, como se a pele se tivesse aberto para expurgar algo que precisava de ser libertado.

A dor tinha sido realmente diferente com a faca de filetar. Mais fina, mais cirúrgica. Mais limpa, decidi na altura. Tinha sido uma dor limpa, concreta e direcionada. Eficaz. Fiquei algum tempo a ver o sangue sair, surpreendida pela claridade do momento. Um instante de coragem e depois libertação. Alívio.

Aprendi depressa que para evitar chamar a atenção teria que me treinar na arte da cicatrização rápida. Álcool, suturas adesivas e Kelo-Cote passaram a andar sempre comigo. Ao fim de algum tempo comecei a estender as tatuagens da anca para a coxa, mas nunca consegui cortar-me em pele já pigmentada, era sempre ao contrário: corte, sangue, cicatriz, tinta. Corte, sangue, cicatriz, tinta. Corte, sangue, cicatriz, tinta.

Publicado por M.

Uma mulher. Um corpo, uma mente, um coração, uma alma. Dura, carinhosa. Desconfiada, crente. Chorosa, sorridente. Uma mulher, todos os mundos.

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