A Porta

Esta é uma estória em que só acontecem coisas.

Ele pegou no casaco, transladado da marquise para as costas de uma cadeira da sala durante a rotina matinal, e olhou para ela, equipada com leggings e t-shirt, a dedicar à taça de aveia a mesma atenção que prestava a tudo o que lhe passava pelas mãos. Ela sentiu o olhar e continuou a focar-se nos pedaços de noz escondidos na taça.

Ele abriu a porta, parou, baixou a cabeça, voltou o rosto para trás. Ela continuava concentrada na taça de aveia como se dali viesse o nirvana. Ele passou a ombreira e fechou a porta. Como sempre, deu uma volta no trinco do lado de fora.

Ela pousou a taça de aveia na mesa e correu para a cozinha, mais próxima que a casa de banho. Inundou a pia de vómito. Aveia, nozes, canela, parte do vinho tinto da noite anterior. Fechou a torneira e apoiou a testa no antebraço. Os olhos ardiam, a testa latejava, o peito subia e descia pressionado pela angústia do nojo. Usou o detergente da louça para esfregar com veemência mãos, rosto. Foi à gaveta buscar uma toalha da louça limpa, enxugou-se. Foi à entrada calçar as sapatilhas de rua. Vestiu o casaco, abriu a porta, saiu, voltou a trancá-la, com duas voltas. Chamou o elevador, desceu à garagem, encaixou-se no lugar do condutor, carregou no comando.

Ele estava parado, a uns quantos quilómetros de casa. A realidade era que nesse dia não ia ao escritório. Tinha, há semanas, pedido o dia. A noite anterior pesava-lhe nos ombros, que não na consciência. O rádio debitava notícias, tinha sido ela a usá-lo no dia anterior. Mudou a estação para algo familiar, levantou a cabeça, voltou a apertar o cinto e fez o caminho de sempre, uma dúzia de quilómetros, até à casa onde, não sendo dele, sempre se tinha sentido aceite. Estacionou à porta, tocou, subiu. Ali estava. O cabelo negro, a lingerie que insinuava a nudez, o rosto feliz. Abriu o sorriso e entrou.

Ela estacionou no parque urbano. Àquela hora, no final do inverno, poucos carros havia. Desligou o motor, pôs os auscultadores, procurou a playlist e abriu a aplicação de exercício. Dois goles de água e saiu. Uns quantos passos até ao trilho, uma imitação de alongamentos e começou. O caminho era familiar, fazia-o de olhos fechados. Os pés a baterem no chão com mais energia do que a recomendada para articulações já sofridas. Tocou no comando e saltou quatro faixas. Acelerou. Os pés estavam mais leves, a energia era necessária para a velocidade. O corpo já não era assim tão forte e a mistura entre distribuição de impacto, controle da respiração e atenção à música foram suficientes. Atacou o pavimento, seriam 45 minutos.

Ele levantou-se da cama e, com o à-vontade da intimidade, foi ao frigorífico buscar uma garrafa de água. Depois de ir à casa de banho, ela tinha-o seguido e esperava encostada à porta da sala. Esperava sempre por ele. Tinha um robe branco, fino, pelos ombros, cinto aberto e caído, nudez óbvia mas sempre natural. Ele sorriu, fechou a porta do frigorífico e estendeu-lhe a água. Esvaziou a garrafa com a natural sofreguidão da sede e saíram juntos para o pátio. Era um final de manhã ainda frio e partilharam o baloiço acolchoado. Falaram do que de mais importante tinha acontecido nos dias em que não se tinham visto. Ele despejou a noite passada, enquanto ela o observava atenta, neutra, acariciando as costas nuas. Quando os cigarros se apagaram, deitaram-se e deixaram o baloiço abanar enquanto viam o céu azul raiado de nuvens.

Ela saiu do duche, prostrou-se em frente ao espelho e deixou cair a toalha. Enfiou umas meias antiderrapantes e foi sentar-se na cadeira do escritório. Verificou os dois computadores, em menos de duas horas resolveu o imperativo. Voltou ao espelho da casa de banho, soltou a toalha do cabelo já quase seco. Quando saiu de casa, com um vestido simples mas óbvio, maquilhagem leve e cabelo rebelde, pensou em partir a chave dentro da fechadura. Da mesma forma como pensava, aqui e além, em não fazer aquela curva da via rápida. O restaurante era discreto, enfiado na colina de uma vila anónima, e ainda assim familiar, onde todos os tratavam pelo nome. Nunca, em anos, ninguém tinha prestado um segundo olhar ao facto de ela não exibir aliança e ele sim. Já entrada a tarde, almoçaram. Falaram do que de mais importante tinha acontecido nos dias em que não se tinham visto. Ela vomitou a noite passada, enquanto ele a observava atento, neutro, acariciando as costas da mão. Levaram os dois carros até a um novo hotel, sempre anónimo, sempre moderno. Enquanto o elevador subia, os corpos já se prendiam.

Ele acabou de pôr a mesa e abriu a segunda garrafa. Com a sabedoria nunca ensinada e nunca aprendida das mulheres, ela levou as travessas para a sala. Ouriços do mar, ostras cruas mortas pela acidez do limão, fois gras decorado com compota de cebola caramelizada em vinho do Porto e um queijo francês queimado no forno e afogado em vinho branco, a habitual mistura de subtileza e brutalidade. Partilharam o prazer da mesa com o mesmo desprendimento com que partilhavam corpos e vidas. Quando pousou os cafés, ela soltou o cinto do robe sem o despir e deitou-se na mesa, ao lado de pratos, copos e talheres, de olhos agudos e mãos acutilantes. Ele esvaziou com lentidão o café, devolvendo o olhar, levantou-se, agarrou-lhe a cintura com as duas mãos e puxou-a para onde já não se conseguisse firmar. O sol já tinha dado a volta e entrava pelas frinchas das cortinas. A coluna, incansável desde a manhã, já repetia a playlist que o tempo e a intimidade tinham apurado. Os corpos, ideais na sua imperfeição, encontravam-se por instinto e hábito. Houve um copo que caiu e manchou a parede de espumante.

Ela pendurou-se na janela do 14ª andar do hotel para fumar, quando ele, rindo-se, acendia um cigarro na cama e soprava o fumo para o detetor de incêndios. Atirando a beata com um riso, ela voltou à cama, roubou-lhe o cigarro e apagou-o na rodela de limão descartada na mesinha de cabeceira.

Ele esfregou o cabelo com energia, usou um pouco do creme dela e voltou ao quarto. Deitada de barriga para baixo em lençóis de algodão frescos e húmidos, ela lia. Com o corpo ainda molhado, ele deitou-se sobre ela, mordeu-lhe a orelha direita, rodou até cair na cama e riu-se quando o livro lhe aterrou, aberto, na cara.

Ele entrou em casa, despiu o casaco que pendurou na marquise. Abriu um pacote de pipocas salgadas e ajustou-se no sofá. Ela entrou em casa, pendurou o casaco despido na marquise. Agarrou uma garrafa e dois copos pelo caminho e encaixou-se no seu espaço, entre o corpo dele e o sofá. Olharam-se e sorriram. “What It Takes” desliza pelo ecrã.

Publicado por M.

Uma mulher. Um corpo, uma mente, um coração, uma alma. Dura, carinhosa. Desconfiada, crente. Chorosa, sorridente. Uma mulher, todos os mundos.

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