Soa a filme classe B, livro da Harlequim, canção romântica sem circulação comercial. Mas acompanhem-me lá no exercício – o que teria sido a vossa vida se não tivessem a capacidade de se apaixonarem.
A premissa parece óbvia, logo na linha de partida. Quase todos responderíamos “se não fosse capaz de me apaixonar, nunca tinha amado”. Entra o gasto poema de Lord Tennyson. E como a verdade das coisas nunca se conforma a lentes rosadas, registe-se que o “In Memoriam” de Tennyson foi escrito após a perda de um grande e bom amigo e não na sequência de um terrível e inultrapassável desgosto amoroso.
O que virá mesmo a propósito, em jeito de contraditório, depois de vertermos o óbvio.
Sem paixão não tinha tido o Hugo, desportista, roqueiro e drogado, que me ensinou que há sempre vida depois da morte. Sem paixão não tinha tido o Julián, sul-americano, radical e criativo, que me ensinou que não há desaforo que esgote o mundo. Sem paixão não tinha tido o Dinis, arquiteto, esteta e protetor, que me ensinou que o dinheiro não traz felicidade mas nos compra momentos felizes. Sem paixão não tinha tido o Pedro, escritor, insano e voraz, que me ensinou que nada existe sem pensamento. Sem paixão não tinha tido o Eduardo, músico, avassalador e transitório, que me ensinou que sem silêncio não faz sentido a sinfonia.
Sejamos realistas, no entanto. Raramente a paixão nos traz amor. O amor é uma inadvertência da paixão. A paixão traz-nos o mundo – aquele mundo que vale a pena. A paixão dá-nos a capacidade de ir mais fundo, mais além, mais acima; de abrirmos o peito à vida e a consumirmos à dentada. A paixão traz o deslumbre e dele vem a arte. A paixão mantém-nos crianças eternas, filósofos do quotidiano, questionando sempre, a cada esquina, o aceite. A paixão mete gente surpreendente no nosso caminho, gente que nos escora no desafio e nos expande. A paixão faz-nos peritos e diletantes, ávidos e insaciáveis. A paixão é o jazz da vida – uma escala impossível, feita de dissonâncias, improvisos, vocalizações, harmonizações de metais, sopros e percussões. O caos feito nexo. O passo no vazio a três mil metros de altitude. O estalar da lombada do próximo livro. O concerto da banda que não conhecemos. O primeiro roçar dos dedos de um desconhecido na clavícula. O pedido de uma refeição às cegas num menu que não sabemos ler. E abrir a janela da paisagem quotidiana para ver um novo pôr-do-sol a cada dia. E beijar a mesma boca repetidamente para descobrir uma nova língua a cada toque. E cozinhar arroz de ervilhas com um cigarro nos lábios e um copo de vinho na mão para reinventar o palato a cada garfada.
A paixão, sendo uma escolha, será justa mas triste. Para alguns, sortudos e amaldiçoados, é uma inevitabilidade. Uma condenação abençoada a tudo sentir, a tudo querer, a tudo viver, a tudo morder, a tudo agarrar e levar para casa.
Sem paixão a vida é bidimensional. Chata e achatada. Feita de rectas e esquadrias. Uma matriz insípida, quase contabilística, traçada a preto em folha imaculada. O que teria sido a minha vida se não tivesse a capacidade de me apaixonar? Fácil. Curta.

Apaixonei-me…. pelas tuas palavras. Beijos.
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Saudades das tuas… Beijos.
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