Os mecanismos da perda são curiosos. Revestem-se de desconstrução feita no meio da dor. Obrigam-nos a mergulhar no pântano do sofrimento e a espernear atolados em viscosidade e degradação, o que só nos afunda mais na prisão imobilizante de um certo desespero. Perder implica posse. Vem daí a platitude parva do “mais vale amar eContinue a ler “. da perda”
Arquivos mensais:Novembro 2020
Perco-me de ti nos sítios onde já não estás.
. da recorrência
Revisito-te amiúde. És permanência e inevitabilidade. Há algo de profundamente nosso que nunca nos abandona. Que sabemos sem dizer e que aceitamos com conforto. Temos história. Décadas que não são impunes. Partilhamos alma, razão e ser. Sabemo-nos e descobrimo-nos. Sem esforço e com vontade. Partilhámos camas por onde calhou, calcorreámos cidades de rios e deContinue a ler “. da recorrência”
Falácia circular
Queremos todos que gostem de nós. Mas gostarem de nós não pode nunca vir à custa de nos anularmos. Sob pena de não ser de nós que acabam por gostar.
.da exigência
“Ninguém dá o que tu dás.” Se visitarem o Blue Notes 1.0 há por lá um texto que, discretamente, cospe esta frase para cima da narradora. Continua a ser das poucas entradas que me orgulham à distância de mais de uma década. Não só porque se trata de um diálogo muito bem construído (assumo aContinue a ler “.da exigência”
Umbral
Saio da casa de banho enrolada num lençol feito toalha onde as manchas de água vão alastrando e colando ainda mais o algodão à pele húmida do banho. Levantas os olhos do livro para os pousar em mim. E sorris. Esse sorriso espontâneo de garoto desarma-me sempre, e hoje por alguma razão quase me comove.Continue a ler “Umbral”
Músicas da minha vida – “Reflexos”
O jazz chegou à minha vida pela mão da minha mãe. Curiosamente, ela não ouvia jazz, foi sempre menina de coro de igreja, afinada e composta. Como já perceberam, saio ao meu pai. Mas os primeiros CD de jazz que ouvi entraram-me no quarto pela mão dela que, de alguma forma, começou a fazer-me umaContinue a ler “Músicas da minha vida – “Reflexos””
Soltas
O pior crente é o cínico que se questiona.
eucaristia
Era uma vez uma menina. Não era particularmente interessante, nem chamava a atenção quando passava pelo caminho acolchoado a relva que levava ao átrio da igreja, dia após dia, sempre à mesma hora, a tempo da missa das sete. Menos aos Domingos. Aos Domingos não havia missa das sete. Usava invariavelmente saia e embora mudassemContinue a ler “eucaristia”
Soltas
A vida é uma coleção de desapontamentos. Esperanças esvaziadas, promessas incumpridas, possibilidades fracassadas.
segunda-feira
Era quase quase meia noite. Descia a bandeira xadrez no fim de semana vivido fora de mim e os planos já se organizavam para as despedidas de hoje. Toca o telefone, era a Catarina, “passei-me com o Manuel e o gajo trancou-se no quarto da miúda e nem sai nem me deixa entrar”. O queContinue a ler “segunda-feira”
dar corpo à ausência
Assim que a porta se fechou nas tuas costas, foi como se uma cortina de gelo descesse sobre a casa. E não estou a ser metafórica, foi arrepio de pele, encolher de ombros em desconforto, nuca eriçada por calafrio. Como se atrás de ti tivesse ido qual cauda de cometa todo o calor destes dias.Continue a ler “dar corpo à ausência”
Admirável Mundo Novo
Já choraram de máscara? Não podem dizer que já fizeram o bingo da pandemia se ainda não choraram de máscara.
. da solidão
Estou em pé num espaço vazio. Tenho os pés assentes em algo que me sustém mas não há nada à minha volta, é como se me segurasse em ausências. É um ambiente sem cor, sem som, sem temperatura, sem movimento. É tempo e presença. E é aí que estou, em pé. Orwell dizia que nascemosContinue a ler “. da solidão”
Aguda
Ouve-se o mar. As ondas, no seu ir e vir certo como a morte. Mas sente-se também algo mais profundo. Aquele rugido rouco do oceano que parece que nasce nos confins do tempo para nos trazer a memória de tudo o que somos enquanto humanidade. Limitamo-nos a navegar na superfície da sabedoria da água salgada,Continue a ler “Aguda”