Subi as escadas a correr, tinha ficado a conversar depois das aulas e estava atrasada para ir ter contigo. Como sempre àquela hora os teus pais estavam a trabalhar e tínhamos a casa só para nós, por isso nem me dei ao trabalho de bater, abri a porta de fora e galguei os degraus paraContinue a ler “Primeiro amor”
Arquivos mensais:Setembro 2020
É só carregar num botão
Só me lembrei quando passei a soleira e senti o silêncio. Parei na entrada, com a porta ainda aberta, a carteira ao ombro e a Uncharted a saltar em automatismo do telemóvel para a coluna esquecida nessa manhã no esvazia bolsos. Ainda por cima Kensington era a tua cena, tinhas sido tu a trazê-los paraContinue a ler “É só carregar num botão”
1.
Prendi o lençol por baixo do teu ombro esquerdo e enrolei-o num casulo à nossa volta, apertado por baixo das minhas costas, num conforto desesperado. Abracei-te o máximo que os meus braços me deixaram enquanto te amparava a base da nuca com o berço da minha mão. Perguntaste se podíamos ficar assim até à eternidade.Continue a ler “1.”
Vigília
Pelas paredes casca de ovo do quarto escorrem gotas de angústia. Cintilam à luz do candeeiro de quadro que ilumina a cabeceira da cama. Na parede em frente, os motivos do papel reflectem-se e brilham na mesma frequência, desenhando um mapa de pontos que lampejam como se me fitassem em perseguição. Desvio o olhar paraContinue a ler “Vigília”
Marcadores de intimidade – acordar
– Bom dia alegria. – Bom dia poesia. Ofereço bom humor à tua introspecção e devolves verso à minha prosa.
[.]
Fazermo-nos presentes no outro vem a um custo. O tempo próprio encolhe em proporção direta com o que se dilata na partilha e na exteriorização. Sofrem os elencos de livros por ler, músicas por ouvir, sofre a lista de espera da Filmin e sofrem as horas de sono. Não sei se ainda é possível ser-seContinue a ler “[.]”
Aos sonhadores
Matar o sonho é matarmo-nos. É mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso. – Fernando PessoaLivro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.II. O #DiaMundialDoSonho foi ontem – mas pode ser hoje outra vez
“The Talk”
A doçura da melodia e da voz escondem a angústia da perda da inocência a que obriga a realidade. Uma canção de protesto sem punhos e em forma de prece semi gospel e cheia de soul.
. do processo
Há dias em que um par de palavras basta. Noutros, é um diálogo que começa na rua e termina na página. Na maior parte das vezes, é um esforço consciente. Uma decisão racional, um contrariar da procrastinação, uma tarefa. Em conversa, ontem diziam-me “mas é normal não teres escrito nada hoje, não se pode estarContinue a ler “. do processo”
. da nitidez
Os contornos do real. É muito vulgar esta expressão. Entre quem reflecte e tenta corporizar o produto desse método de vida, principalmente. Entre quem encontra na palavra escrita a saída do labirinto da existência, em particular. Claridade. Ver o mundo com nitidez, em todas as suas arestas, curvas de luz e sobrecarga sensorial. Não podeContinue a ler “. da nitidez”
coagulação, inflamação, proliferação, contração, remodelação
Começou tudo no sábado em que, a acabar de preparar o jantar para as visitas, cortei o anelar esquerdo ao mesmo tempo que o pão. Foi uma dor momentânea, de sangue abundante, com uma faca de pão grosseira que esfacelou mais do que golpeou. Apertei o dedo acima do coração a caminho da casa deContinue a ler “coagulação, inflamação, proliferação, contração, remodelação”
The West Wing meets House of Cards
o meu corpo não é domínio público
É uma questão velha como o mundo. Quando a humanidade inventou as religiões subordinou a mulher ao homem e daí veio a enxurrada de lixo sexista que dominou o ocidente até à década de sessenta do século passado. Comecei recentemente a reler “O Segundo Sexo” de Simone de Beauvoir (reeditado pela Quetzal em 2009, comContinue a ler “o meu corpo não é domínio público”
Banda Sonora do Amor
Todos temos aquelas canções que nos falam ao sentimento. A primeira faixa da mix tape que a crush do liceu nos gravou, aquela música que nos dedicaram numa guitarra, a melodia que nos acompanhou ao altar. Há umas que são sublimes, outras pirosas de todo, até há algumas incompreensíveis. Mas todas, todas, todas fazem soarContinue a ler “Banda Sonora do Amor”
Marcadores de Intimidade – Desmoronar
Somos todos construções sociais, por muito Mogli que nos achemos. Apresentamo-nos ao mundo conforme esperamos ser percecionados, modelando porte e trato. Há a nossa versão dentro da empresa, há nossa versão à mesa das reuniões familiares, há nossa versão primeiro encontro via Tinder. Espelhamo-nos constantemente na que acreditamos ser a expectativa alheia. E vivemos assim,Continue a ler “Marcadores de Intimidade – Desmoronar”
corpo
Os homens têm um corpo. As mulheres acordam todos os dias dentro de um corpo diferente.
“when there are nine”
. do ritmo
Lento. Feito de dedos que roçam a pele, sopros atrás da orelha, lábios que afloram e dentes que não apertam. Lento. Feito de espaços, compassos e abraços. Lento. Feito de cheiro de pele, lençóis molhados, marcas de dedos na cabeceira da cama. Lento. Feito de intenção, destino e finalidade. Lento.
Afectos postais
E em ano de pandemia passou a valer a pena passar pela caixa do correio e receber 200 abraços.
Odilia
A brisa que chega da rua mal é capaz de fazer abanar as pétalas das marilopes. O calor é denso, como tudo nesta cidade de sonho e maldição, onde a vida se corta à faca na mesma medida em que ainda é dançada na rua. Pela janela chega também o cheiro da goiaba madura, queContinue a ler “Odilia”
Porfírio
O meu avô foi fotógrafo. Quer dizer, foi caixeiro viajante a maior parte da vida, mas o primeiro emprego que teve foi como ajudante de fotógrafo e, depois, titular do cargo. Quando nos tirava fotografias, às duas filhas e à duas netas, obrigava-nos sempre a usar maquilhagem e a pentear muito bem o cabelo. Dizia-nosContinue a ler “Porfírio”
. da empatia
Imagens num ecrã. Eras imagens num ecrã, e nem o teu rosto se via entre elas. Mas as imagens no ecrã eram belíssimas, e as palavras eram as certas. Se os valores por trás dessas palavras fossem reais, estaria tudo lá – parecia tudo ajustado, sentia-se tudo presente. Encontrámo-nos e fomos explorando, trocando palavras, cautelosasContinue a ler “. da empatia”
. da angústia
Começa algures entre o externo e o umbigo, no ponto mais indefeso do nosso âmago. É um fio de dor, quase imperceptível, que vai desenhando um rasto de agonia pela artéria acima. Quando chega ao peito já é feito de espasmos e corta a respiração. Ao bater no coração explode e rasga as entranhas, esfacelaContinue a ler “. da angústia”
18h43
Calço os saltos mais confortáveis que tenho, não sei como a noite vai correr, e vou uma última vez ao espelho. Mais um toque de iluminador e o sorriso que me devolve é felino – estou pronta.
Primum non nocere
Sinto que cheguei a um ponto da viagem em que começa a pesar a importância do que ando, em última análise, cá a fazer. A ausência de qualquer tipo de fé transcendental sempre tornou mais urgente a atribuição de significado à quotidianidade, que o peso da herança (pela ausência de desejo de prole) nunca oContinue a ler “Primum non nocere”
Ajoujada ao peso do afecto
Acabo de entrar em casa e trago nos braços a vida toda. Além do de sempre – a carteira, o portátil, a água, os livros, o telemóvel a tocar música – trago envelopes para correio editorial, cartas manuscritas recebidas, conversas acabadas de ter que ainda ressoam entre as orelhas e, pendurado nos dedos indicador eContinue a ler “Ajoujada ao peso do afecto”
Cartas de Amor – Luísa
Olá Luísa, Um dia, há quase década e meia, escrevia-te assim: Fresh starts Vinte e quatro horas. Daqui a 24 horas tem início o tal resto da tua vida que canta o outro. Ancorada num passado recente e tempestuoso, cheio de vagas dissonantes, começa a nova e tão ansiada etapa. Amanhã regressas à cidade queContinue a ler “Cartas de Amor – Luísa”
Cartas de Amor – Amores maiores
Inevitável. Incondicional. Irracionalizável. Explicar este amor é um exercício de futilidade. Há pouca coisa que não consiga, com maior ou menor esforço, passar a verbo. O amor que vos tenho é a excepção. Amo-vos porque sim. Porque não escolhi amar-vos, porque quando soube de vós já se me tinham misturado na massa do sangue eContinue a ler “Cartas de Amor – Amores maiores”
. da escolha
Como sociedade habituámo-nos a achar que o direito à vida é um dever. Que pelo facto de existirmos temos algum tipo de dívida para com o colectivo. Nunca acreditei nesse mantra. A minha vida a mim pertence. Posso escolher partilhá-la, mas no final do dia é minha e apenas minha. É por isso que oContinue a ler “. da escolha”
Cartas de Amor – Judite
Sabes, Judite, eu gosto de ti. Não sei, há coisas na vida que devem ser epidérmicas, que não se entendem e que não se explicam. Conhecemo-nos em viagem, dividimos quarto, conversas e afetos por duas semanas e por circunstancial que pudesse ter sido, ficou um querer bem até hoje, apesar no meu ghosting… Quero saberContinue a ler “Cartas de Amor – Judite”
. do fascínio
O cheiro de uma pele. Um olhar firme, sereno e perscrutador.Uma voz grave, de peito, uma voz de declamar, que faz da minha sala uma catedral em abóbada.O barulho de uma unha a deslizar contra o sentido do pelo da barba ao longo da linha do queixo.Uma mão aberta, firme, de palma empurrada contra oContinue a ler “. do fascínio”
Kintsugi
Vivemos em tempos descartáveis. É tudo transitório, temporário, enquanto durar. Deixámos de olhar para a vida como algo que perdura, em que se persiste e pelo qual se luta. Perdemos o hábito de consertar as varinhas mágicas – são a dime a dozen, nem vale a pena. A arte de recuperar – restaurar – éContinue a ler “Kintsugi”
Solidões habitadas
Adoro cidades. São o meu habitat. As minhas savanas. São confortáveis, todas reconhecíveis. Malhas urbanas, blocos empilhados, texturas espraiadas. Eixample e RavalBaixa Pombalina e AlfamaUpper East Side e Washington HeightsShinjuku e Shibamata É o conceito que as une: concentração populacional e infraestruturas. Os que as distingue é tanto e tão vasto como aquilo que fazContinue a ler “Solidões habitadas”
jorro
Não consigo parar o meu pensamento, é como um comboio desgovernado, uma avalanche de emoções e ideias encadeadas ininterruptamente, que não consigo parar, abrandar, conter. Às vezes basta perceber que fiz algo tão pueril como um comentário que falhou a marca no Twitter para desencadear uma crise de horas de insónia naquela que era umaContinue a ler “jorro”
first dates 101
Perguntas que se fazem para avaliar carácter: – Roger Waters ou David Gilmour?
nocturnos
Contra tudo o que o instrutor Teodoro se esforça por me inculcar na cabeça, não perco o hábito de sair do Trindade, tirar a máscara, desenrolar o cordão dos fones, ligá-los ao telemóvel, abrir o Spotify e escolher o ritmo do resto da noite. Quase que o consigo ouvir a repetir-me, em todas as aulas,Continue a ler “nocturnos”